O ano era 1970. Eu trabalhava na Manufatura de Brinquedos Estrela, chefiando o setor químico.
Pedi férias para o mês de abril, fora do habitual que era tirar férias no fim do ano, quando a atividade de fabricação de brinquedos diminuia numa pausa sazonal. Neste ano, o motivo para férias era um evento muito importante para mim: minha mulher e eu fazíamos parte de um movimento religioso, Equipes de Nossa Senhora, que é internacional, e naquele ano haveria um encontro em Roma, com previsão de audiência pelo Papa.
A Diretoria concordou, com uma condição: como eu deveria estar na Itália, depois do encontro eu deveria visitar uma fábrica de bonecas muito especial. Fui informado de que na Europa se comentava haver na Itália um método de fabricação de bonecas diferente, desconhecido do tradicional.
Devo lembrar que no Brasil estávamos no regime da ditadura militar, que desde 1964, para economia de divisas estrangeiras, havia considerado absolutamente proibida a importação de cigarros, perfumes, bebidas e brinquedos, considerados produtos supérfluos. Como consequência, a indústria nacional de brinquedos tinha que suprir todas as necessidades deste ramo de produtos, com o máximo de inventiva e criatividade que pudesse desenvolver para as novidades que o mercado exigia.
A Estrela tinha sua linha de bonecas seguindo o padrão americano estabelecido após a 2ª. Guerra Mundial, bonecas feitas basicamente de peças duras de polietileno ( corpo,braços e pernas) com cabeças mais macias, de vinil.
Então estávamos pela primeira vez na Europa, o deslumbramento de conhecer pessoalmente o velho mundo, conhecido dos livros escolares: Portugal, França, Suíça, Itália e depois Espanha.
Para nossa surpresa, minha mulher e eu fomos escolhidos para saudar o Papa em nome dos dois mil casais, vindos de todas as partes do mundo, no dia 4 de maio, reunidos na Basílica de São Pedro.
Terminado nosso programa na Itália, fui ao encontro do representante da Estrela na Europa, que me aguardava em Milão. Fui sozinho com ele, de trem, a uma cidadezinha, Cannetto Sull’Oglio, com cerca de 4.500 habitantes.
Fato interessante, a fábrica de brinquedos era o maior empreendimento da cidade. O número de operários, principalmente mulheres, era pequeno, entre 200 e 300 pessoas, mas não eram, como no Brasil, permanentes: aproximadamente entre abril e setembro, trabalhavam na fábrica, nos demais meses do ano voltavam para casa, para atividades agrícolas. Fiquei muito admirado com a maneira como as moças trabalhavam nas linhas de montagem, cantando em coro. Contaram-me que este costume mantinha elevado o ânimo, principalmente no verão, onde muitas mulheres poderiam desmaiar por causa do calor.
Mas o que a fábrica tinha de extraordinário era o equipamento ultra moderno de transporte de peças do depósito de partes acabadas para a área de montagem, em caixas metálicas suspensas em trilhos próximos ao teto, com uma programação (mecânica, nesta época não havia eletrônica) que fazia descarregar o conteúdo em locais determinados.
Mas a maior novidade era outra: no lugar da fabricação de corpos, braços e pernas de plástico, as bonecas que a empresa havia inventado davam a sensação, ao toque, da pele suave do bebê sobre sua carne gordinha e macia.
A fabricação era em duas áreas diferentes: numa era fabricada a pele, em duas camadas de vinil de dureza ultra baixa, correspondendo à derme e à epiderme da peça; noutra era feita a introdução de um composto químico por dentro da pele, que em poucos segundos se tornava uma espuma de poliuretano flexível, semelhante às de um colchão de espuma, enchendo completamente a pele e dando firmeza à peça.
O resultado final era incrível, parecia que a gente estava apertando um bebê de verdade.
Ao retornar ao Brasil, apresentei meu relatório, considerando plausível a adoção da técnica, mas com modificação quanto ao método de fabricação da pele, que propus fosse feito numa só camada, usando o equipamento de moldagem rotacional existente na Estrela.
No ano seguinte tive a oportunidade de fazer parte de um grupo de diretores da Estrela que ia para a Europa adquirir máquinas para a fábrica.
Depois de ver muitas máquinas em Dusseldorf (Alemanha) e materiais plásticos novos, como polipropileno, no centro de pesquisas da Shell em Roterdam (Holanda), estava de novo em Milão.
Numa vitrine de uma loja de brinquedos vimos pela primeira vez o boneco daquela empresa, 40 cm de altura, sem calças, sentado num urinol, mostrando sua genitália. Uma pessoa comentou: um produto destes não poderia ser feito no Brasil, um país de tradição católica que vai considerar indecente este boneco. Embora a escolha de produtos não fizesse parte de minhas atribuições, eu disse que os tempos estavam mudados, e este bebê representava a realidade de uma forma muito mais natural do que as bonecas assexuadas que havia no mercado.
Fomos todos para a fábrica, onde os diretores puderam observar o processo e propor parceria com a Estrela, com a aquisição do know how. Tudo foi acertado e voltamos ao Brasil.
Construídas as instalações e adquiridas as máquinas para fazer a espuma de poliuretano, o longo período de gestação fez com que o Manequinho, nome que foi escolhido para o bebê, fosse lançado em 1974.
O Manequinho não só tinha um rosto muito simpático, como bebia água, que se acumulava num reservatório interno. Com o acionamento de um botão nas costas, fazia xixi num urinol, fornecido junto. A divulgação de propaganda dizia: o primeiro boneco que tem pipi e faz xixi.
Não foi fácil enfrentar a resistência dos departamentos de marketing e de vendas. Em várias reuniões preliminares foi dito que haveria preconceito contra a venda, que meninas que ganhassem o Manequinho seriam ridicularizadas por empregadas da família e por vizinhos, e finalmente que seria um fracasso comercial.
Nesse tempo, um produto novo que vendesse 2.000 unidades no primeiro ano era considerado sucesso.
Por causa do investimento, a Diretoria Industrial programou o lançamento ambicioso de 5.000 unidades.
E o que aconteceu? O sucesso foi espantoso, todas as meninas que ouviam falar do Manequinho o pediam a seus pais, 10.000 unidades foram vendidas em 1974, estoque esgotado, urgente compra de mais matéria prima para atender ao mercado.
O sucesso do Manequinho durou muitos anos, a espuma de poliuretano passou a ser um material comum para fabricação de outras partes de bonecas, como as de corpo de pano com alguma atividade elétrica onde o alojamento para pilhas ficava embutido na espuma.
O tempo passou, o custo da matéria prima de poliuretano ficou proibitivo, a fábrica da Estrela se mudou, o processo foi descontinuado.
Mas o Manequinho ficou como um marco notável, não só de tecnologia, mas também de avanço na questão de apresentar, de forma lúdica, a natureza humana como ela é.
Engenheiro Especialista